Iboga
Bia Labate
Afrique
Aterrizei no aeroporto de Yaounde, capital dos Camarões, com o objetivo
de coletar dados sobre uma misteriosa raiz africana a qual se atribui
fortes propriedades terapêuticas. A primeira sensação, o bafo quente e
pegajoso, é de familiaridade. Os pagne, roupas tradicionais usadas pelos
negros, fazem-nos sentir por um momento em Salvador… mas logo se
percebe que não é bem "a mesma coisa". Bastam poucas horas para que
todas os nossos referencias conceituais fiquem suspensas no ar. Para o
forasteiro, não existe nenhuma coerência ou ordem estética. Não há ruas
nem endereços; o trânsito é cada um por si. Música 24 horas por dia.
Homens passeiam (sem malícia) de mãos dadas pelas ruas. Ao andar pela
"cidade", medem, mexem e tocam em você. Como branca, dá vontade de ser
invisível.
É difícil não se chocar na África, ficar imune. De repente, parece que
acordamos de um sonho: existe sob os nossos olhos um continente todo
pulsando e expandindo-se com sua pobreza sem precedentes. Em meio a este
cenário, mil modelos de bonitos e criativos penteados enfeitiçam e
contagiam o turista com uma sensação de uma alegria poderosa, encerrando
simbolicamente a força de um povo.
A Iboga (1)
Não foi difícil achar o primeiro pé da tal planta. Trata-se de uma raiz
subterrânea que chega a atingir 1,50m de altura, pertencente ao gênero
Tabernanthe, composto por várias espécies. 650 destas já foram
identificadas na África Central. A que tem mais interessado a medicina
ocidental é a Tabernanthe iboga, encontrada sobretudo na região dos
Camarões, Gabão, República Central Africana, Congo, República
Democrática do Congo, Angola e Guinea Equatorial. O arbusto cresce em
áreas de floresta tropical, solos pantanosos ou savanas molhadas. Ela
floresce e produz frutos durante todo o ano. O seu principal alcalóide –
leia-se: princípio ativo - é a ibogaína, extraída da casca da raiz e
que representa 90% dos 30 alcalóides encontrados nas raízes desta
espécie. A iboga pertence a família dos alucinógenos clássicos, entre
eles o peyote, os cogumelos, a ayahuasca e o LSD.
Acredita-se que os pigmeus tenham descoberto a iboga em tempos
imemoriais. Até hoje estas populações a utilizam em ritos nos quais
dificilmente admitem a participação de brancos. Segundo os escritos de
um especialista nesta planta, o italiano Giorgio Samorini, algumas
espécies de animais, entre as quais os mandris e javalis, alimentam-se
das raízes da iboga para conseguir efeitos entorpecentes. É provável que
os pigmeus tenham descoberto as propriedades alucinógenas da iboga
observado o comportamento curioso destes animais.
Em 1901 a ibogaína foi isolada pela primeira vez. Há notícias de que ela
teria sido usada no ocidente desde do início do século no tratamento de
gripe, doenças infecciosas, neurastemia e doenças relacionadas ao sono.
Em 1962, Howard Lotsof, um jovem viciado em heroína em busca de uma nova
droga, acaba descobrindo a iboga. Após uma viagem de 36 horas, relata
que perdeu totalmente o desejo de consumir heroína e não sentiu nenhum
sintoma de abstinência. Administrou a substância a sete amigos também
viciados, e em cinco casos o resultado foi o mesmo.
Em 1983 Lostsof reportou as propriedades anti-aditivas da ibogaína e em
1985 obteve quatro patentes nos EUA para o tratamento de dependências de
ópio, cocaína, afetamina, etanol e nicotina. Fundou o International
Coalition for Addicts Self Help e desenvolveu o método Endabuse, uma
famacoterapia experimental que faz uso da ibogaíne HCl, a forma solúvel
da ibogaína. Através da administração de uma única dose, cujo efeito
dura dois dias, haveria uma atenuação severa ou completa dos sintomas de
abstinência, permitindo que o dependente se desintoxique sem dor. Em
segundo lugar, uma retirada ou perda do desejo de consumir drogas por um
período mais ou menos longo de tempo.
Os rituais de iniciação da tradição do Bouiti (2)
Atualmente a iboga é utilizada por curandeiros tradicionais dos países
da bacia do Congo e na religião do Bouiti na Guinea Equatorial, Camarões
e sobretudo no Gabão, onde membros importantes das hierarquias
políticas e militares do país são adeptos. Aproveita-se principalmente a
casca da raiz mas também atribui-se propriedades medicinais às folhas, a
casca do tronco e a raiz. No Gabão, a raiz e a casa da raiz são
encontradas facilmente nas farmácias tradicionais e nos mercados das
principais cidades. Existe aí uma ONG dedicada inteiramente a iboga. Se
mantida a tendência atual, a coleta da espécie selvagem está colocando-a
em risco de extinção. A iboga pode ser utilizada sozinha ou em
combinação com outras plantas. Ela é empregada no tratamentos da
depressão, picada de cobra, impotência masculina, esterilidade feminina,
AIDS e também como estimulante e afrodisíaco. Na crença dos curandeiros
locais, é eficaz também sobre as "doenças místicas", como é o caso da
possessão.
Tonye Mahop, pesquisador do Jardim Botânico de Limbe, conta que "existem
vários registros de cura da dependência de cigarro, de mganga
(marijuana africana) e de fofo (um álcool local concentrado, feito de
vinha de palmeira) com a iboga nos cultos do Bouiti. O problema é que os
informantes não contam bem como preparam e usam a planta, tem uma parte
do conhecimento que fica sempre em segredo".
Existem dois tipos de Bouiti: o tradicional (que rejeita o cristianismo)
e o sincrético, o mais difundido. O primeiro é praticado pelos Mitsogho
e o segundo pelos Fang, ambos grupos Bantu. É provável que durante o
século XIX os pigmeus tenham transmitido seus conhecimentos aos Apindji,
que os teriam passado por sua vez ao Mitsogho, ambas populações do sul
do Gabão. Estes grupos elaboraram durante o século XIX um culto dos
mortos, o Bouiti tradicional. O Bouiti sincrético ou Fang foi elaborado
na época da primeira guerra mundial. Ele é produto de influências do
Bouiti tradicional; do culto ancestral tradicional dos Fang, o Bieri
(que utilizava uma outra planta alucinógena), e da evangelização cristã,
sobretudo católica. Atualmente há nove ramas do Bouiti. Existe um
outro culto que utiliza a ioga, o Abri, até hoje pouquíssimo estudado.
Este é comandado por mulheres e se dedica ao tratamento de doenças com
ioga e outras plantas medicinais.
Abada Mangue Clavina é presidente da Associação Bombo Ima et Bandeei
(ASSOKOBINAC) dos Camarões e líder de uma igreja Bouiti Dissumba Mono
Bata em Yaounde, cuja base é o núcleo familiar composto por suas duas
mulheres e 10 filhos. Há prières todos os sábados. De acordo com ele,
existe um tratamento específico para a tóxico-dependência com o uso da
iboga, que dura dois ou três dias, dependendo do paciente e da gravidade
do problema. São ministradas duas, três ou quatro colheres de café (4 a
8 g) de um pó da casca da raiz (essa é raspada e picada). A "iboga
purifica o sangue. Temos obtido sucesso em 100% dos casos". Os casos
mais difíceis podem exigir a realização de iniciação, que tem como custo
200.000 mil francos centro africanos (CFA) em oposição aos 50 mil
empregados no tratamento ordinário.[3]
A iniciação dura três dias. Na abertura, o candidato confessa todos os
seus pecados e toma um banho ritual. Este momento clímax da vida do
bouitisita é marcado pela ingestão em jejum de uma enorme quantidade de
eboka (pode chegar a 500g) e de ossoup, uma espécie de chá frio feito
com a raiz da planta. O grupo acompanha o neófito durante a prière, onde
todos cantam, tocam e dançam noite a dentro.
A iniciação tem como objetivo produzir um coma induzido - os estudiosos
ainda não conseguiram definir com precisão o tempo de duração deste. De
acordo com os praticantes, em algum momento o espírito sai do corpo e
viaja para o plano da criação, para o "lado de lá", isto é, visita o
mundo dos mortos. Pode receber revelações, curas ou se comunicar com os
seus ancestrais. A citar, a "harpa sagrada", orienta a viagem e traz o
espírito de volta para o corpo. Terminada a cerimônia, o sujeito,
renascido com uma nova identidade - Bandzi, 'aquele que comeu' - deve
relatar detalhadamente as suas visões e experiências. A diferença do
ritual Bouiti com outros rituais de passagem tradicionalmente estudados
pelos antropólogos, é que neste caso, a morte é quase real (e não
metafórica ou simbólica), pois explora-se o limite concreto entre vida e
morte.
A curandeira Nanga Nga Owono Justine, iniciada há 25 anos na rama
Dissumba do Bouiti, explica: "A Eboka é uma ciência que corrige. Ela é
como uma porta que se abre somente quando uma pessoa morre. Os negros
tiveram a fortuna através da Eboka de visitar o lugar para onde iremos
quando morreremos, só que antes de morrer - é uma ocasião de se
transformar." Sua mãe, a anciã Bilbang Nga Owono Christine, acrescenta:
"para se curar você tem que estar convencido, é você mesmo que se cura.
Precisa da intenção, da eboka e da fé em Deus, que é o maestro de tudo".
Lembrando a sua própria iniciação, época em que tinha uma "doença nos
olhos", contou que "uma estrela me guiou até um hospital no lado de lá,
onde eu fui operada dos olhos. Vi o meu espírito saindo do meu corpo e
os médicos me operando. Voltei curada".
Podem ocorrer morte nos rituais de iniciação do Bouiti. Segundo Calvin,
isto pode acontecer devido a diversos fatores. Um deles é a
incompetência ou falta de capacidade do guerriseur. Outro é que a eboka
não pode ser administrada para um doente que esteja demasiado debilitado
fisicamente. Finalmente, "se doente que faz a iniciação é um bruxo,
durante viagem astral o seu espírito quer para ir para a zona da
obscuridade. Ele pode se perder e no caminho e não conseguir voltar,
causando a morte do corpo físico". Os Fang conhecem um antídoto, uma
folha que anula o efeito da eboka, a qual chamam Ebebing.
A Versão científica
A literatura científica sobre o tema é controversa. Sabe-se que a
ibogaína produz ataxia (perda do equilíbrio corpóreo), tremores, aumento
da temperatura corpórea, da pressão e da freqüência cardíaca. Estudos
em ratos e primatas demonstraram que a ibogaína em quantidade de 100
mg/kg é neurotóxica (a dose utilizada no tratamento de Lotsof é
normalmente de 25 mg/kg). Ela é diferente de outros medicamentos na
medida em que é a única substância conhecida que age diretamente sobre o
mecanismo da dependência no corpo humano. Entretanto, não se sabe ao
certo exatamente o seu grau de eficácia: há casos de recuperação e de
fracasso do tratamento. Não existe nenhum estudo científico que comprove
que a ibogaína cura dependência, apenas evidências anedóticas - que não
são poucas. Para entender o problema simplificadamente: uma substância é
considerada segura para uso humano quando se aplicada em doses
superiores a 10 vezes em um animal não apresente grau de toxicidade. No
caso da iboga, foram constatados efeitos neurotóxicos em doses até 4
vezes superiores, ou seja, não existe uma margem de segurança
suficiente. De fato, assim como há relatos de morte nos cultos de
iniciação Bouiti com iboga, houve três mortes no tratamento não
controlado de toxicodepentes com ibogaína na Holanda, França e Suíça.
Mas não faltam entusiastas das suas virtudes e num rápido passeio pela
internet é possível encontrar diversos relatos de cura de dependência
com a ibogaína.
Os tratamentos com ibogaína não são autorizados nos Estados Unidos,
Reino Unido, França ou Suíça. Mesmo assim tem sido usados
clandestinamente em quartos de hotéis e apartamentos. No Panamá, a
instituição liderada por Lotsof cobra 15.000 dólares o tratamento; na
Itália, o custo é de US 2.500, e nos Estados Unidos varia entre 500 e
2.500 dólares. Em Israel a iboga está sendo pesquisada para uso no
tratamento da "síndrome do pós-guerra" que afeta soldados.
De acordo com italiano Antonio Bianchi, médico e toxicólogo em produtos
naturais, a ibogaína "age sobre uma quantidade de receptores neuronais
incrível. Sua característica fundamental é a sua ação sobre a NMDA
(N-metil-D-aspartate). Estes receptores estão presentes sobretudo em
duas áreas: o hipocampo, que controla a memória e as recordações, e a
sensibilidade proprioceptiva, parte responsável pela sensação que temos
do nosso corpo físico." Se estes receptores são bloqueados, a pessoa
constrói uma imagem do "eu" que não está relacionada com o eu físico, ou
seja, está fora do corpo. Este seria o mecanismo neurofisiológico da
"viagem astral", o ponto de encontro entre a teoria nativa e a
científica. «Nestas condições, o homem tende a construir aquilo que é
definido como uma bird eye image, ou seja, o sujeito assume uma projeção
de si mesmo a partir de uma posição do alto», afirma o médico.
Esta sensação não é provocada apenas pela ibogaína. Ela pode ser
produzida também pela ketamina, um anestético endovenoso, ou ser
resultado de um choque, uma meditação profunda etc. A medicina tem
dedicado atenção crescente a um fenômeno conhecido como "near death
experiences", pessoas que passaram por perto da morte. Existem relatos
de recorrências neste tipo de experiência: a presença de uma luz
infinita que é a própria divindade, encontro com mortos, visão
panorâmica da própria vida passada etc. Cientificamente, a explicação é
de que o cérebro, quando submetido a uma enorme stress (como num ataque
cardíaco, por exemplo) produz alucinações, reconstruindo imediatamente
um mundo fantástico. A iniciação com a iboga seria uma experiência deste
gênero. De fato, algumas descrições bouitistas sobre o « mundo de lá »
coincidem com os relatos das pessoas que passaram por uma experiência
vizinha da morte. Para os místicos, ao contrário, esta é uma evidência
de que este mundo existe mesmo, a continuação da vida após a morte.
A profecia Bouiti
Existe uma profecia Bouiti, surgida nos anos 40 - período em que
missionários católicos colonialistas franceses investiram severamente
contra o culto - de que este se expandirá, unindo todos os povos negros
do mundo. Por isso, os bouitistas estão abertos para a iniciação de
brancos. Nos últimos anos, diversos estrangeiros, sobretudo franceses,
têm se submetido a experiência. A curandeira Justine comentou,
entretanto, que "já constatamos que os europeus não tem o mesmo
organismo que nós. Então fazemos um tratamento mais leve, não se pode
dar a mesma quantidade de eboka que damos para um africano. Quando
sabemos que a pessoa já ‘viajou', paramos."
Participei de uma prière e comi uma colherinha de iboga. O efeito foi
fortíssimo, durando 24 horas. Não posso dizer que entendi muita coisa,
além do que achei o ritual bem cansativo. A sensação foi de que os Fang
tem razão, a iboga é qualquer coisa que não tem a ver com este mundo,
mas diz respeito ao mundo dos mortos. Ficou apenas uma enorme
curiosidade - e medo - de me submeter a iniciação. A África, por si
mesma, já é bastante inebriante.
Pós escrito:
Um pouco depois de terminar este escrito, meu companheiro de viagem
descobriu que estava com malária. Fiquei “presa” durante 6 dias no norte
do pais, numa região muçulmana (descobri que um homem pode ter no
máximo 4 mulheres). Savana: calor e muito pó’. As diversas medicinas
aplicadas não estavam surtindo efeito. Prossegue o tratamento. L’Afique
c’est dure.
Yaounde, fevereiro de 2001.
[1]A grafia varia dependendo da região: eboga, eboka, iboga, liboka,
ébogé. Há ainda denominações como mdombo, bondo, dibuyi, entre outros.
Iboga é o vocábulo mais «universal».
[2]Bouti é a grafia em francês; em inglês é Bwiti e em português seria Buiti. Resolvi manter no original por via das dúvidas.
[3] Em fevereiro de 2001, 1 U$ dólar eqüivalia a 720 CFA.