bogaína: a droga que cura o vício
Da planta iboga é extraída a ibogaína, uma substância psicodélica que faz sonhar por 12 horas e é cada vez mais usada contra a dependência química
Fausto SalvadoriO filme apareceu como uma espécie de sonho acordado durante as 48 horas que Wladimir passou sob o efeito da ibogaína, uma droga psicodélica, em uma clínica no Estado de São Paulo (que prefere não divulgar o nome). Durante esse tempo, ele ficou sonolento, mas plenamente consciente. Viu nítidas as imagens de sua vida, como se fossem projetadas em uma tela de LCD na parede do quarto, logo acima do médico que o observava sobre a cama. Quando o efeito passou, foi a primeira vez em anos que Wladimir acordou sem a fissura, o desejo incontrolável pela fumaça do crack que ataca os dependentes. Nem o desejo, nem as náuseas e nem as dores comuns desse tipo de abstinência apareceram. “Era como se eu nunca tivesse usado droga nenhuma”, diz o hoje administrador de empresas, que passou pelo tratamento e se livrou da dependência em 2007.
A substância que ajudou Wladimir é cada vez mais usada em terapias experimentais contra o vício. De 1962, quando começou a ser testada em dependentes químicos, até 2006, 3.414 pessoas usaram a ibogaína, obtida a partir da raiz de um arbusto africano, a iboga, para fins terapêuticos. Só nos últimos quatro anos, no entanto, 7 mil pessoas passaram pelas terapias, de acordo com dados preliminares de um estudo do Dr. Kenneth Alper, da New York School of Medicine, nos Estados Unidos. O número de tratamentos cresceu tanto que provocou uma escassez da substância, ainda produzida de maneira artesanal, no mundo.
Wladimir Kosiski, 33 anos: diz estar livre do crack após ter ficado 48 horas sob o efeito da ibogaína
Crédito: Carolina Pessoa
Crédito: Carolina Pessoa
Um deles, da religião Bouiti no Camarões, faz com que o participante coma uma grande quantidade de iboga (que pode chegar a 500 g) enquanto um grupo canta, toca e dança a noite inteira. A cerimônia de três dias pode produzir um coma induzido — o que é entendido como uma viagem ao mundo dos mortos. O objetivo, dizem, é receber revelações, curar doenças ou comunicar-se com aqueles que já morreram. Trabalho da antropóloga paulistana Bia Labate, que estudou a droga, afirma que “acredita-se que os pigmeus tenham descoberto a iboga em tempos imemoriáveis”.
A primeira pesquisa brasileira no assunto está prevista para começar no ano que vem, sob orientação do psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, coordenador do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Ainda que os resultados sejam positivos, não há chance de cápsulas de ibogaína chegarem às farmácias tão cedo. “Sob estrita supervisão médica, a droga poderia se tornar um medicamento, mas custaria milhões de dólares em estudos e ainda não há investidores para tanto”, diz Hencken.
Comprimidos feitos com substância da raiz dos arbustos africanos
Crédito: divulgação
Crédito: divulgação
Na outra frente, a ibogaína promoveria uma espécie de psicoterapia intensiva ao fazer o paciente enxergar imagens da própria vida enquanto a mente fica lúcida. Estas visões não seriam alucinações, como as imagens de uma viagem de LSD. É como sonhar de olhos abertos, o que ajudaria os dependentes a identificar fatores que os teriam empurrado para as drogas em determinados momentos da vida. Estudos com eletroencefalogramas feitos pela Universidade de Nova York, nos Estados Unidos, apontaram que ondas cerebrais de um paciente que tomou ibogaína têm o mesmo comportamento daquelas de alguém em REM (a fase do sono em que sonhamos). “O sonho renova a mente e, se no sono comum temos apenas cinco minutos de sonho a cada duas horas, na ibogaína são 12 horas de sonho intensivo”, aponta o gastroenterologista Bruno Daniel Rasmussen Chaves, que estuda o tema desde 1994 e participará da pequisa da Unifesp.
RISCOS> No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) informa que não há restrições legais à ibogaína, mas seu uso como medicamento não está regulamentado. Por isso, os tratamentos são considerados experimentais e as clínicas não fazem propaganda. A importação é feita pelos próprios pacientes, que pagam cerca de R$ 5 mil por uma sessão com o derivado da raiz. Após passar por exames médicos, o dependente ingere as cápsulas, deita-se em uma cama e deixa sua mente navegar pelos efeitos, que podem durar até 72 horas. Durante esse tempo, médicos monitoram o paciente. Vale dizer que a literatura médica registra 12 óbitos associados ao uso de ibogaína nas últimas quatro décadas, provocados por diminuição na frequência cardíaca (o equivalente a uma morte a cada 300 usuários). No entanto, estudos de Deborah Mash, neurologista da Universidade de Miami, nos Estados Unidos, que já acompanhou o tratamento de cerca de 500 pacientes, apontam que não há registro de morte por ingestão de ibogaína em ambiente hospitalar. É preciso que o paciente chegue “limpo” à sessão. “As mortes registradas ocorreram em tratamentos de fundo de quintal, em que as pessoas fizeram uso concomitante de ibogaína e outras substâncias”, afirma Chaves.
NÃO HÁ FÓRMULA MÁGICA> Estudiosos e pacientes avisam: a droga não é uma poção mágica. Para se livrar da dependência, Wladimir Kosiski aliou o tratamento à psicoterapia e mudança drástica de hábitos. Voltou a trabalhar, a estudar e nunca mais pisou no local onde comprava crack. Não foi isso o que fez o professor Gilberto Luiz Goffi da Costa, 44 anos, que se tratou com ibogaína pela primeira vez em 2005. Viciado em drogas desde os 14 anos, Gilberto já acumulava 18 tratamentos fracassados contra dependência. Volta e meia, dormia nas ruas de Curitiba e praticava roubos para comprar crack: já havia sido preso cinco vezes. Após usar ibogaína, achou que estava curado. “Tive uma sensação de bem-estar, mas é um efeito que se perde depois”, afirma. Estava livre do desejo, mas continuou a frequentar os mesmos ambientes e amigos com quem dividia drogas. Em pouco tempo, foi dominado novamente pelo crack. “A ibogaína retira a fissura, mas a pessoa pode continuar a usar droga mesmo sem vontade, como alguém que estraga um regime por gula, não por fome”, diz Chaves. Gilberto só conseguiu permanecer “limpo” após a terceira vez que se tratou, em 2008, quando aliou a substância a uma troca completa de atitudes, seguindo o método dos Narcóticos Anônimos. Sem consumir drogas há dois anos, hoje dá aulas de línguas e é consultor no tratamento de outros dependentes. Ao contrário da viagem pelo mundo dos mortos em uma sessão dos rituais africanos, a ibogaína ajudou o curitibano, pouco a pouco, a permanecer no mundo dos vivos.
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