Monica Levy Andersen conhece bem a
importância de uma boa noite de descanso. Mesmo assim ela já abriu mão
de horas preciosas de sono durante meses para se dedicar a uma paixão
recente: investigar como longos períodos de privação de sono afetam o
organismo. De outubro de 2002 a fevereiro de 2003, Monica se levantou de
segunda a sábado às 5h30 e antes das sete já estava em seu laboratório
com uma dezena de ratos preparados para os primeiros experimentos do
dia. Em uma pequena sala do Laboratório do Sono da Universidade Federal
de São Paulo (Unifesp), essa biomédica acompanhou nesses meses o
comportamento de roedores mantidos acordados por quatro dias seguidos.
Seu
objetivo inicial era investigar a origem da agressividade e da agitação
decorrentes da falta de sono, observadas pela primeira vez no final da
década de 1970 pelo médico Sergio Tufik, hoje um dos principais
especialistas em distúrbios do sono no país. À frente do Centro de
Estudos do Sono, Tufik coordena uma série de pesquisas que mapeiam os
distúrbios do sono, capazes de provocar danos aos neurônios e a órgãos
como o fígado e o coração.
Monica observou um efeito inesperado
que - num primeiro momento - pode até animar os rapazes, além de
questionar o conhecimento atual sobre os hormônios sexuais. Depois de
tirar os ratos de um tanque com água em que se equilibravam sobre
plataformas secas - se dormissem, cairiam na água e acordariam - e os
transferir para suas gaiolas individuais, ela notou que metade dos
animais passou a ter ereção espontânea e a ejacular antes de cair no
sono, mesmo sem nenhuma rata por perto. "Como a privação de sono afeta o
funcionamento de uma área do sistema nervoso associada ao prazer,
encontrei nesse efeito a oportunidade de avaliar se drogas como a
cocaína, a maconha e as anfetaminas de fato melhoram o desempenho
sexual, como dizem seus usuários", conta Monica.
E melhorou?
Depende. Chamado de hipersexualidade, esse aumento de interesse por sexo
tornou-se ainda mais intenso quando a biomédica injetou nos ratos
cocaína ou ecstasy , drogas que agem sobre o centro cerebral de
reforço do prazer. Todos os animais que receberam um desses dois
compostos tiveram ereção - em muitos casos, ereções múltiplas. Antes que
algum marmanjo imprudente tente repetir essa experiência, é preciso
deixar claro que esse efeito só aparentemente é benéfico. O uso contínuo
de cocaína causa impotência sexual e a privação prolongada de sono gera
um desequilíbrio bioquímico no organismo capaz de levar à morte.
O
estudo aprofundado desse efeito rendeu a Monica, aos 31 anos, uma
invejável produção científica. São 34 artigos científicos, 20 deles já
publicados e o restante previsto para sair em breve, todos reunidos em
uma tese de doutorado de 500 páginas feita em três anos, com apoio
financeiro da FAPESP. Esse trabalho permitiu-lhe ainda chegar a uma
possível explicação para a hipersexualidade decorrente da insônia
forçada: seria um tipo de compensação pelas ereções que ocorrem durante o
sono que o roedor deixou de ter enquanto permaneceu acordado. Alguns
mamíferos, entre eles os ratos e os homens, têm ereções espontâneas na
mais peculiar das cinco fases do sono: o sono REM ( Rapid Eyes Movement ), quando os músculos associados ao movimento voluntário ficam paralisados e ocorrem os sonhos.
Nessa
fase o sistema nervoso central se encontra tão ativo quanto durante a
vigília, razão por que o REM também é chamado de sono paradoxal (até uns
80 anos atrás pensava-se que a atividade cerebral era menor durante o
sono). Há cerca de cinco anos, o médico Markus Schmidt, do Instituto
Ohio de Neurociência e Medicina do Sono, nos Estados Unidos, propôs que
essas ereções associadas ao sono REM teriam uma função biológica: servir
de treino para a cópula, já que, ao menos na natureza, a sobrevivência
depende da reprodução eficiente e os encontros para o acasalamento são
imprevisíveis.
Portanto, é preciso estar preparado.Esses
indícios levaram Monica e o orientador do seu trabalho, Sergio Tufik, a
pensarem na hipersexualidade como um segundo efeito de uma mesma causa:
assim como quem não prega os olhos por uma noite inteira precisa de mais
horas de sono na madrugada seguinte - é o chamado rebote de sono -, o
mesmo ocorre com as ereções espontâneas do sono REM.
O mais
importante dessa série de estudos é indicar que o desequilíbrio dos
níveis de mensageiros químicos do sistema nervoso - a exemplo dos
neurotransmissores dopamina e serotonina, sobre os quais agem,
respectivamente, a cocaína e o ecstasy - está associado à disfunção
erétil de origem neurológica. Disparada pela alteração no ritmo de
liberação desses neurotransmissores em regiões do encéfalo ligadas ao
desejo sexual e às emoções, essa forma de disfunção erétil é diferente
daquela de origem física, provocada pela irrigação sangüínea
insuficiente do pênis. "Possivelmente o desejo e o desempenho sexuais
dependem de que todos os neurotransmissores se encontrem em níveis
adequados no sistema nervoso", diz a pesquisadora.
Progesterona e ereção
Ao
analisar o sangue dos animais, Monica fez outra descoberta intrigante,
capaz de influenciar as terapias para a disfunção erétil em seres
humanos. Ela constatou uma brutal redução dos níveis sangüíneos do
hormônio testosterona. Encontrado em concentrações 20 vezes maiores nos
machos que nas fêmeas, esse hormônio é geralmente associado ao desejo
sexual e à ereção. Quatro dias depois do início do experimento, houve
uma queda de cerca de 90% na taxa de testosterona dos ratos insones,
enquanto os níveis do hormônio progesterona, responsável pela preparação
do útero para a implantação do feto e pelo desenvolvimento das
glândulas mamárias na gravidez, apresentaram-se cinco vezes acima do
esperado.
A privação de sono teria, então, provocado uma espécie
de gravideznos ratos machos? Claro que não. Monica acredita em uma
redefinição de papéis. O hormônio progesterona desempenharia no
organismo masculino uma função antes atribuída à testosterona, permitir a
ereção peniana, enquanto a testosterona responderia pela intensidade da
libido. Em busca de confirmação, Monica deu isoladamente testosterona,
progesterona ou estradiol a grupos distintos de roedores, que passaram
quatro dias sem dormir e em seguida receberam cocaína - diferentemente
do estudo anterior, esses animais haviam sido castrados e seus
organismos praticamente não produziam mais esses hormônios. O tratamento
com progesterona provocou ereção em seis de cada dez ratos, enquanto a
testosterona despertou o mesmo efeito em 30%, segundo artigo publicado
em 2004 no Journal of Neuroendocrinology .
Era mais um
indício de que a progesterona desempenharia uma função importante na
ereção. Faltava, porém, a contraprova. Em um estudo semelhante, Monica
deu aos animais um composto chamado mifepristona, que anula o efeito da
progesterona. Os animais que receberam mifepristona não tiveram ereção,
de acordo com o artigo publicado neste mês na Hormones and Behavior
. "Antes desse estudo não havia relatos científicos sobre o papel da
progesterona na ereção", afirma Elaine Hull, da Universidade Estadual da
Flórida, Estados Unidos, autoridade mundial em neurofisiologia do
comportamento sexual.
Segundo Elaine, o fato de a dose de
progesterona que se mostrou eficaz ter sido muito elevada - os ratos
receberam 100 miligramas por quilograma de peso, nível 250 vezes
superior ao usado para deixar as ratas receptivas à cópula - não exclui a
participação na ereção de outro hormônio como a corticosterona,
associada ao estresse. "Mesmo assim, é um efeito interessante, uma vez
que ainda não havia sido mostrada a ação da progesterona nem da
corticosterona no controle da ereção", diz Elaine Hull.
Antes que os
rapazes resolvam furtar o anticoncepcional das namoradas à base de
progesterona, é preciso deixar claro dois pontos. Nem sempre os efeitos
observados em roedores também acontecem nos seres humanos. "Esses
resultados não significam que um homem normal terá ereção se tomar
progesterona", diz a fisiologista Janete Franci, da Universidade de São
Paulo em Ribeirão Preto, que estuda a fisiologia da reprodução em
roedores. São necessários estudos específicos para comprovar o papel da
progesterona na ereção, uma vez que os ratos avaliados por Monica não se
encontravam em um estágio fisiológico normal.
"Esses trabalhos
reabrem a questão da influência desse hormônio no comportamento sexual
masculino", afirma Janete."Essa é uma de nossas principais contribuições
para entender os prejuízos causados pela privação do sono", afirma
Sergio Tufik. Também ele começou a estudar as conseqüências das horas a
menos de sono para o organismo há 25 anos, depois de obter um resultado
inesperado em um experimento. Sob a orientação do psicofarmacologista
Elisaldo Carlini, da Unifesp, Tufik investigava o efeito de drogas como a
maconha sobre o sistema nervoso central quando verificou que a privação
do sono REM provocava um desequilíbrio químico e tornava as células
nervosas mais sensíveis à ação da dopamina.
Tufik, Carlini e o farmacologista Charles Lindsey publicaram em 1978 esse resultado em um artigo na Pharmacology
, que se tornou referência nessa área. Essa descoberta reorientou o
trabalho de Tufik, um homem corpulento de quase 2 metros de altura e voz
grave, que coordena cerca de 60 pesquisadores no maior centro de
investigação de sono do Brasil, com uma média de 25 artigos publicados
por ano.
Obesidade e apnéia
A investigação do
comportamento sexual exagerado dos ratos é a que mais chama a atenção,
mas está longe de ser a única de relevância sobre os efeitos da falta de
sono, que afeta quase um terço da população - cerca de 60 milhões de
brasileiros. Outros estudos com animais e seres humanos estão ajudando a
compreender como fatores aparentemente sem relação com o sono - como a
dor crônica de uma artrite ou o desgaste emocional de uma discussão no
trabalho - afetam a qualidade do sono, pioram o desempenho da memória e
nos fazem cochilar no dia seguinte.
As pesquisas da equipe da
Unifesp estão ajudando a melhorar o descanso noturno de quem não dorme
bem por causa de breves interrupções na respiração - apnéia - durante o
sono. Em geral provocada pela obstrução da passagem do ar para os
pulmões e agravada pela obesidade, a apnéia atinge de 2% a 4% das
pessoas com mais de 40 anos e aumenta em quatro vezes o risco de
desenvolver hipertensão arterial. O acúmulo de gordura, em especial ao
redor do pescoço, eleva o risco de ocorrência dessas paradas
respiratórias entre os homens, segundo pesquisa coordenada pela
pneumologista Sônia Togeiro, realizada com cem obesos de ambos os sexos.
Já entre as mulheres a probabilidade de desenvolver apnéia
aumenta conforme cresce o índice de massa corporal, número obtido pela
divisão do peso pelo quadrado da altura. Um dos principais tratamentos
para a apnéia obstrutiva do sono é o uso de uma máscara acoplada a um
aparelho que mantém o fluxo de ar para os pulmões conhecido pela sigla
CPAP. Um estudo da pneumologista Lia Bittencourt mostrou que a adesão ao
CPAP era maior quando os usuários passavam por um programa de
orientação sobre uso do aparelho.
A médica reumatologista Suely
Roizenblatt comprovou recentemente que a relação entre dor e qualidade
do sono é uma via de mão dupla: a dor pode atrapalhar o sono, mas as
alterações no sono também parecem aumentar a sensibilidade à dor. Em
ambos os casos, o resultado é sempre uma intensa sensação de cansaço
durante o dia seguinte, mesmo que a pessoa tenha dormido um número de
horas suficiente para repor as energias.
Por meio da
polissonografia - exame que registra a atividade elétrica cerebral, os
batimentos cardíacos e a respiração quando uma pessoa está dormindo -,
Suely comparou o padrão de sono de 17 crianças saudáveis com o de 34 com
fibromialgia, problema de origem desconhecida que provoca dores
disseminadas por músculos e ossos, além de fadiga. Na entrevista com os
portadores de fibromialgia, a pesquisadora notou que muitas mães se
queixavam de não dormir bem e decidiu incluí-las na pesquisa. Resultado:
71% das mães de crianças com fibromialgia também apresentavam esse
mesmo problema.
A análise das polissonografias revelou uma
perturbação no sono profundo, também chamado de sono de ondas lentas,
que antecede o REM. "Essas alterações sutis não modificam a distribuição
das fases do sono, mas afetam sua qualidade", explica Suely. Fica mais
fácil compreender o que ela descobriu, com uma rápida explicação da
estrutura do sono, que se caracteriza por um estágio REM e outro
não-REM, com quatro fases. Quando os olhos começam a pesar após um longo
dia de trabalho, é sinal de que o cérebro está mudando seu ritmo de
funcionamento e começando a desacelerar.
Nessa fase de
sonolência, a freqüência das ondas elétricas cerebrais diminui, a
consciência seesvai e os músculos relaxam. Mas qualquer barulhinho ainda
incomoda e desperta. É a fase 1 do sono, que dura uns poucos minutos.
Na fase 2, o padrão das ondas se altera novamente e o
eletroencefalograma registra rápidas descargas elétricas, de menos de um
segundo de duração. O corpo já relaxou de vez e está mais difícil
acordar. Essas duas fases iniciais recebem o nome de sono leve ou sono
de ondas rápidas e duram cerca de 45 minutos, metade de um ciclo
completo de sono.
Efeito alfa
À medida que o sono
se aprofunda nas fases 3 e 4, as ondas cerebrais ficam progressivamente
mais lentas. O ritmo da respiração cai, os batimentos cardíacos
diminuem e os barulhos já não incomodam mais. "É quando fica mais
difícil acordar", explica o biólogo inglês Paul Martin no Counting Sheep: the Science and Pleasures of Sleep and Dreams
. Foi nessas fases, consideradas as mais reparadoras de todo o ciclo de
sono, que surgiram essas tênues alterações chamadas padrão alfa.Há
também uma associação entre a ocorrência do padrão alfa e o aumento da
intensidade da dor após o sono, como mostrou outro estudo, feito com 40
mulheres com fibromialgia e 43 sem esse problema. Segundo Suely, essa
interferência chamada padrão alfa pode prejudicar a produção de
serotonina.
Fabricada em geral durante as fases 3 e 4 do sono, a
serotonina atua como um neurotransmissor no sistema nervoso central,
mas produz um efeito analgésico nos nervos periféricos. "Essa alteração
do sono parece reduzir a resistência à dor", comenta a pesquisadora.
Como conseqüência, uma dor qualquer - de uma topada na quina de uma
mesa, por exemplo - é sentida sempre com mais intensidade. O uso de
ultra-som no tratamento da fibromialgia mostrou-se eficaz para reduzir a
dor, mas não eliminou as interferências no sono de ondas lentas dessas
pessoas, de acordo com um estudo de Suely e Tatiana Almeida publicado em
2003 na revista Pain.
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