sábado, 5 de abril de 2014

Sono/Distúrbio do sono

Falta de sono ativa sexualidade, aumenta a sensibilidade à dor e prejudica o fígado e o coração






Monica Levy Andersen conhece bem a importância de uma boa noite de descanso. Mesmo assim ela já abriu mão de horas preciosas de sono durante meses para se dedicar a uma paixão recente: investigar como longos períodos de privação de sono afetam o organismo. De outubro de 2002 a fevereiro de 2003, Monica se levantou de segunda a sábado às 5h30 e antes das sete já estava em seu laboratório com uma dezena de ratos preparados para os primeiros experimentos do dia. Em uma pequena sala do Laboratório do Sono da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), essa biomédica acompanhou nesses meses o comportamento de roedores mantidos acordados por quatro dias seguidos.

Seu objetivo inicial era investigar a origem da agressividade e da agitação decorrentes da falta de sono, observadas pela primeira vez no final da década de 1970 pelo médico Sergio Tufik, hoje um dos principais especialistas em distúrbios do sono no país. À frente do Centro de Estudos do Sono, Tufik coordena uma série de pesquisas que mapeiam os distúrbios do sono, capazes de provocar danos aos neurônios e a órgãos como o fígado e o coração.

Monica observou um efeito inesperado que - num primeiro momento - pode até animar os rapazes, além de questionar o conhecimento atual sobre os hormônios sexuais. Depois de tirar os ratos de um tanque com água em que se equilibravam sobre plataformas secas - se dormissem, cairiam na água e acordariam - e os transferir para suas gaiolas individuais, ela notou que metade dos animais passou a ter ereção espontânea e a ejacular antes de cair no sono, mesmo sem nenhuma rata por perto. "Como a privação de sono afeta o funcionamento de uma área do sistema nervoso associada ao prazer, encontrei nesse efeito a oportunidade de avaliar se drogas como a cocaína, a maconha e as anfetaminas de fato melhoram o desempenho sexual, como dizem seus usuários", conta Monica.

E melhorou? Depende. Chamado de hipersexualidade, esse aumento de interesse por sexo tornou-se ainda mais intenso quando a biomédica injetou nos ratos cocaína ou ecstasy , drogas que agem sobre o centro cerebral de reforço do prazer. Todos os animais que receberam um desses dois compostos tiveram ereção - em muitos casos, ereções múltiplas. Antes que algum marmanjo imprudente tente repetir essa experiência, é preciso deixar claro que esse efeito só aparentemente é benéfico. O uso contínuo de cocaína causa impotência sexual e a privação prolongada de sono gera um desequilíbrio bioquímico no organismo capaz de levar à morte.

O estudo aprofundado desse efeito rendeu a Monica, aos 31 anos, uma invejável produção científica. São 34 artigos científicos, 20 deles já publicados e o restante previsto para sair em breve, todos reunidos em uma tese de doutorado de 500 páginas feita em três anos, com apoio financeiro da FAPESP. Esse trabalho permitiu-lhe ainda chegar a uma possível explicação para a hipersexualidade decorrente da insônia forçada: seria um tipo de compensação pelas ereções que ocorrem durante o sono que o roedor deixou de ter enquanto permaneceu acordado. Alguns mamíferos, entre eles os ratos e os homens, têm ereções espontâneas na mais peculiar das cinco fases do sono: o sono REM ( Rapid Eyes Movement ), quando os músculos associados ao movimento voluntário ficam paralisados e ocorrem os sonhos.

Nessa fase o sistema nervoso central se encontra tão ativo quanto durante a vigília, razão por que o REM também é chamado de sono paradoxal (até uns 80 anos atrás pensava-se que a atividade cerebral era menor durante o sono). Há cerca de cinco anos, o médico Markus Schmidt, do Instituto Ohio de Neurociência e Medicina do Sono, nos Estados Unidos, propôs que essas ereções associadas ao sono REM teriam uma função biológica: servir de treino para a cópula, já que, ao menos na natureza, a sobrevivência depende da reprodução eficiente e os encontros para o acasalamento são imprevisíveis.
Portanto, é preciso estar preparado.Esses indícios levaram Monica e o orientador do seu trabalho, Sergio Tufik, a pensarem na hipersexualidade como um segundo efeito de uma mesma causa: assim como quem não prega os olhos por uma noite inteira precisa de mais horas de sono na madrugada seguinte - é o chamado rebote de sono -, o mesmo ocorre com as ereções espontâneas do sono REM.

O mais importante dessa série de estudos é indicar que o desequilíbrio dos níveis de mensageiros químicos do sistema nervoso - a exemplo dos neurotransmissores dopamina e serotonina, sobre os quais agem, respectivamente, a cocaína e o ecstasy - está associado à disfunção erétil de origem neurológica. Disparada pela alteração no ritmo de liberação desses neurotransmissores em regiões do encéfalo ligadas ao desejo sexual e às emoções, essa forma de disfunção erétil é diferente daquela de origem física, provocada pela irrigação sangüínea insuficiente do pênis. "Possivelmente o desejo e o desempenho sexuais dependem de que todos os neurotransmissores se encontrem em níveis adequados no sistema nervoso", diz a pesquisadora.

Progesterona e ereção

Ao analisar o sangue dos animais, Monica fez outra descoberta intrigante, capaz de influenciar as terapias para a disfunção erétil em seres humanos. Ela constatou uma brutal redução dos níveis sangüíneos do hormônio testosterona. Encontrado em concentrações 20 vezes maiores nos machos que nas fêmeas, esse hormônio é geralmente associado ao desejo sexual e à ereção. Quatro dias depois do início do experimento, houve uma queda de cerca de 90% na taxa de testosterona dos ratos insones, enquanto os níveis do hormônio progesterona, responsável pela preparação do útero para a implantação do feto e pelo desenvolvimento das glândulas mamárias na gravidez, apresentaram-se cinco vezes acima do esperado.

A privação de sono teria, então, provocado uma espécie de gravideznos ratos machos? Claro que não. Monica acredita em uma redefinição de papéis. O hormônio progesterona desempenharia no organismo masculino uma função antes atribuída à testosterona, permitir a ereção peniana, enquanto a testosterona responderia pela intensidade da libido. Em busca de confirmação, Monica deu isoladamente testosterona, progesterona ou estradiol a grupos distintos de roedores, que passaram quatro dias sem dormir e em seguida receberam cocaína - diferentemente do estudo anterior, esses animais haviam sido castrados e seus organismos praticamente não produziam mais esses hormônios. O tratamento com progesterona provocou ereção em seis de cada dez ratos, enquanto a testosterona despertou o mesmo efeito em 30%, segundo artigo publicado em 2004 no Journal of Neuroendocrinology .

Era mais um indício de que a progesterona desempenharia uma função importante na ereção. Faltava, porém, a contraprova. Em um estudo semelhante, Monica deu aos animais um composto chamado mifepristona, que anula o efeito da progesterona. Os animais que receberam mifepristona não tiveram ereção, de acordo com o artigo publicado neste mês na Hormones and Behavior . "Antes desse estudo não havia relatos científicos sobre o papel da progesterona na ereção", afirma Elaine Hull, da Universidade Estadual da Flórida, Estados Unidos, autoridade mundial em neurofisiologia do comportamento sexual.

Segundo Elaine, o fato de a dose de progesterona que se mostrou eficaz ter sido muito elevada - os ratos receberam 100 miligramas por quilograma de peso, nível 250 vezes superior ao usado para deixar as ratas receptivas à cópula - não exclui a participação na ereção de outro hormônio como a corticosterona, associada ao estresse. "Mesmo assim, é um efeito interessante, uma vez que ainda não havia sido mostrada a ação da progesterona nem da corticosterona no controle da ereção", diz Elaine Hull.
Antes que os rapazes resolvam furtar o anticoncepcional das namoradas à base de progesterona, é preciso deixar claro dois pontos. Nem sempre os efeitos observados em roedores também acontecem nos seres humanos. "Esses resultados não significam que um homem normal terá ereção se tomar progesterona", diz a fisiologista Janete Franci, da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto, que estuda a fisiologia da reprodução em roedores. São necessários estudos específicos para comprovar o papel da progesterona na ereção, uma vez que os ratos avaliados por Monica não se encontravam em um estágio fisiológico normal.

"Esses trabalhos reabrem a questão da influência desse hormônio no comportamento sexual masculino", afirma Janete."Essa é uma de nossas principais contribuições para entender os prejuízos causados pela privação do sono", afirma Sergio Tufik. Também ele começou a estudar as conseqüências das horas a menos de sono para o organismo há 25 anos, depois de obter um resultado inesperado em um experimento. Sob a orientação do psicofarmacologista Elisaldo Carlini, da Unifesp, Tufik investigava o efeito de drogas como a maconha sobre o sistema nervoso central quando verificou que a privação do sono REM provocava um desequilíbrio químico e tornava as células nervosas mais sensíveis à ação da dopamina.

Tufik, Carlini e o farmacologista Charles Lindsey publicaram em 1978 esse resultado em um artigo na Pharmacology , que se tornou referência nessa área. Essa descoberta reorientou o trabalho de Tufik, um homem corpulento de quase 2 metros de altura e voz grave, que coordena cerca de 60 pesquisadores no maior centro de investigação de sono do Brasil, com uma média de 25 artigos publicados por ano.

Obesidade e apnéia

A investigação do comportamento sexual exagerado dos ratos é a que mais chama a atenção, mas está longe de ser a única de relevância sobre os efeitos da falta de sono, que afeta quase um terço da população - cerca de 60 milhões de brasileiros. Outros estudos com animais e seres humanos estão ajudando a compreender como fatores aparentemente sem relação com o sono - como a dor crônica de uma artrite ou o desgaste emocional de uma discussão no trabalho - afetam a qualidade do sono, pioram o desempenho da memória e nos fazem cochilar no dia seguinte.

As pesquisas da equipe da Unifesp estão ajudando a melhorar o descanso noturno de quem não dorme bem por causa de breves interrupções na respiração - apnéia - durante o sono. Em geral provocada pela obstrução da passagem do ar para os pulmões e agravada pela obesidade, a apnéia atinge de 2% a 4% das pessoas com mais de 40 anos e aumenta em quatro vezes o risco de desenvolver hipertensão arterial. O acúmulo de gordura, em especial ao redor do pescoço, eleva o risco de ocorrência dessas paradas respiratórias entre os homens, segundo pesquisa coordenada pela pneumologista Sônia Togeiro, realizada com cem obesos de ambos os sexos.

Já entre as mulheres a probabilidade de desenvolver apnéia aumenta conforme cresce o índice de massa corporal, número obtido pela divisão do peso pelo quadrado da altura. Um dos principais tratamentos para a apnéia obstrutiva do sono é o uso de uma máscara acoplada a um aparelho que mantém o fluxo de ar para os pulmões conhecido pela sigla CPAP. Um estudo da pneumologista Lia Bittencourt mostrou que a adesão ao CPAP era maior quando os usuários passavam por um programa de orientação sobre uso do aparelho.

A médica reumatologista Suely Roizenblatt comprovou recentemente que a relação entre dor e qualidade do sono é uma via de mão dupla: a dor pode atrapalhar o sono, mas as alterações no sono também parecem aumentar a sensibilidade à dor. Em ambos os casos, o resultado é sempre uma intensa sensação de cansaço durante o dia seguinte, mesmo que a pessoa tenha dormido um número de horas suficiente para repor as energias.

Por meio da polissonografia - exame que registra a atividade elétrica cerebral, os batimentos cardíacos e a respiração quando uma pessoa está dormindo -, Suely comparou o padrão de sono de 17 crianças saudáveis com o de 34 com fibromialgia, problema de origem desconhecida que provoca dores disseminadas por músculos e ossos, além de fadiga. Na entrevista com os portadores de fibromialgia, a pesquisadora notou que muitas mães se queixavam de não dormir bem e decidiu incluí-las na pesquisa. Resultado: 71% das mães de crianças com fibromialgia também apresentavam esse mesmo problema.

A análise das polissonografias revelou uma perturbação no sono profundo, também chamado de sono de ondas lentas, que antecede o REM. "Essas alterações sutis não modificam a distribuição das fases do sono, mas afetam sua qualidade", explica Suely. Fica mais fácil compreender o que ela descobriu, com uma rápida explicação da estrutura do sono, que se caracteriza por um estágio REM e outro não-REM, com quatro fases. Quando os olhos começam a pesar após um longo dia de trabalho, é sinal de que o cérebro está mudando seu ritmo de funcionamento e começando a desacelerar.

Nessa fase de sonolência, a freqüência das ondas elétricas cerebrais diminui, a consciência seesvai e os músculos relaxam. Mas qualquer barulhinho ainda incomoda e desperta. É a fase 1 do sono, que dura uns poucos minutos. Na fase 2, o padrão das ondas se altera novamente e o eletroencefalograma registra rápidas descargas elétricas, de menos de um segundo de duração. O corpo já relaxou de vez e está mais difícil acordar. Essas duas fases iniciais recebem o nome de sono leve ou sono de ondas rápidas e duram cerca de 45 minutos, metade de um ciclo completo de sono.

Efeito alfa

À medida que o sono se aprofunda nas fases 3 e 4, as ondas cerebrais ficam progressivamente mais lentas. O ritmo da respiração cai, os batimentos cardíacos diminuem e os barulhos já não incomodam mais. "É quando fica mais difícil acordar", explica o biólogo inglês Paul Martin no Counting Sheep: the Science and Pleasures of Sleep and Dreams . Foi nessas fases, consideradas as mais reparadoras de todo o ciclo de sono, que surgiram essas tênues alterações chamadas padrão alfa.Há também uma associação entre a ocorrência do padrão alfa e o aumento da intensidade da dor após o sono, como mostrou outro estudo, feito com 40 mulheres com fibromialgia e 43 sem esse problema. Segundo Suely, essa interferência chamada padrão alfa pode prejudicar a produção de serotonina.

Fabricada em geral durante as fases 3 e 4 do sono, a serotonina atua como um neurotransmissor no sistema nervoso central, mas produz um efeito analgésico nos nervos periféricos. "Essa alteração do sono parece reduzir a resistência à dor", comenta a pesquisadora. Como conseqüência, uma dor qualquer - de uma topada na quina de uma mesa, por exemplo - é sentida sempre com mais intensidade. O uso de ultra-som no tratamento da fibromialgia mostrou-se eficaz para reduzir a dor, mas não eliminou as interferências no sono de ondas lentas dessas pessoas, de acordo com um estudo de Suely e Tatiana Almeida publicado em 2003 na revista Pain.

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